sábado, 15 de setembro de 2012

A interiorização silenciosa das disposições de habitus - Palestra Graça Setton


IV congresso de Moda
SENAI – Rio de Janeiro
17 de setembro de 2012

Conferência proferida pela Profa. Maria da Graça Setton


Título: A interiorização silenciosa das disposições de habitus

Primeiramente, boa tarde a todos
É com grande satisfação que aceitei o convite dos organizadores deste evento para estar aqui presente com vocês.
O que trago é uma reflexão que venho travando com meus alunos do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da USP, no interior do grupo de pesquisa denominado Praticas de Socialização Contemporânea, coordenado por mim, acerca dos processos e estratégias de socialização, mas especificamente as estratégias pouco visíveis e silenciosas da educação que incidem sobre nosso comportamento ou nas nossas práticas de cultura.
A pesquisa que deu ensejo a essa discussão, refere-se a uma Iniciação Científica, realizada por uma graduanda em Pedagogia, da FE-USP; tal estudo se insere ainda no escopo de investigações realizadas acerca de outras práticas ou disposições de habitus, entre elas as disposições de gosto relativas à moda, com base em estratégias difusas e ocultas de socialização.
Portanto, passam notadamente, pelo exercício de um aprendizado a partir de um convívio e ou de uma impregnação cultural silenciosa.
Vale ressaltar que o que trago ainda para vcs nessa palestra, acerca das práticas relativas à moda podem e devem ser estendidas para todas as práticas de cultura.

Mas ....o que é mesmo uma prática de cultura?

Trata-se, no meu entender, de todo tipo de comportamento cotidiano, toda ação que faz parte da rotina dos indivíduos ou dos grupos, toda prática que, compondo o dia-a-dia de cada um, explicita um modo de ser e de fazer dos agrupamentos humanos.

Assim, as práticas de cultura em geral podem enquadrar-se nas ações mais prosaicas como, por exemplo, as maneiras de se alimentar, de se vestir ou arrumar o interior das casas
podem enquadrar-se nas escolhas mais extraordinárias, como as relativas à participação em uma associação política, religiosa ou artística, podem enquadrar-se numa opção de lazer ou turismo ou podem se expressar ainda nos comportamentos relativos à escolha de um livro para ler, bem como a tendência por uma expressão estética ou de estilo.

Lembro ainda como expressões de praticas de cultura toda sorte de ações, ora conscientes ora inconscientes, que expressam um movimento corporal quase instintivo, como o andar, o sentar, o falar, o gesticular com as mãos, o ato de fazer um sinal da cruz em frente a uma igreja ou mesmo beijar uma mesusá ao sair ou entrar em casa.

Neste sentido, o que quero discutir aqui com vcs são aspectos relativos ao processo de transmissão difusa de disposições de cultura que irão condicionar uma prática social como a da moda.

Trata-se, sobretudo, de uma investigação que procura dialogar com a teoria disposicionalista empreendida por Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, entre outros, com a intenção de observar e aprofundar os conhecimentos sobre estratégias educativas pouco investigadas, mas muitas vezes involuntárias capazes de construir disposições de habitus.

Preparei para hoje uma apresentação montada em três momentos.
No primeiro deles vou justificar esta problemática
Em seguida, vou me ater aos mecanismos fundamentais que possibilitam o processo de transmissão e incorporação de valores do gosto relativo à moda e,
Por ultimo, vou me debruçar sob as condições de possibilidade de sucesso destes processos de incorporação de disposições de cultura ou disposições de habitus.

Assim sendo, valeria iniciar observando que dentre os estudiosos que se ocupam dos processos educativos, as reflexões acerca das estratégias difusas e insensíveis na formação das disposições de habitus ainda são pouco expressivas.

Grande parte da produção socioantropológica sobre o assunto acaba por revelar, sem verificação empírica, estilos de vida e de gosto, revelações essas que ainda que relevantes, pouco nos auxiliam na sistematização teórica de como eles se constroem.
Parto do pressuposto que a moda e seus estilos são bons exemplos de práticas culturais apreendidas de maneira insensível, desde a mais tenra infância, no interior de instituições variadas, como a família, a escola, clubes e demais espaços de convívio, predominantemente realizadas nas relações de sociabilidade não formais e não intencionais, no entanto, capazes de deixar marcas profundas nas disposições de gosto dos indivíduos.

A partir daí, dialogando com as contribuições de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, busquei compreender melhor os mecanismos pelos quais as disposições de gosto são transmitidas e incorporadas mesmo quando não se tem a intenção explícita de educar/socializar em certa direção.
Trata-se, no meu entender, de um empreendimento necessário para avançar nas questões teóricas relativas aos processos socializadores silenciosos.

Assim sendo, segundo Lahire, desde Bourdieu, a teoria sociológica vem aceitando sem questionamentos a teoria da transmissão cultural do gosto.

Admite que Bourdieu registrou o maior esforço nesta direção, mas alerta contudo, que precisamos aprender mais sobre como essa transmissão se realiza.

De acordo com Lahire, a disposição de gosto é uma realidade que deve ser observada diretamente pelo pesquisador. Ela exigiria de nós um trabalho de identificação dos princípios, estratégias ou modalidades práticas que geram a incorporação de uma diversidade de disposições e gostos.

Nesse sentido, inspirando-me nas proposições críticas de Lahire, julgo que a noção de disposição de cultura, entre elas a da moda deve ser melhor investigada a fim de poder avançar na compreensão das estratégias socializadoras, em especial aquelas difusas, silenciosas e ocultas.

Por outro lado, no que se refere às contribuições de Bourdieu, lembro que para ele, disposições de cultura exprimem, em primeiro lugar, o resultado de uma ação cognitiva e organizadora das mentes, apresentando um sentido próximo ao de palavras como estrutura
designa uma maneira de ser, um estado habitual, em particular do corpo e, sobretudo, uma predisposição, uma tendência, propensão ou inclinação construída ao longo dos processos socializadores, às vezes à custa de dores e sofrimentos individuais.
Segundo Bourdieu, na expectativa de reconhecimento ou de obediência às exigências de um espaço social específico, os agentes ver-se-iam muitas vezes predispostos a agir segundo as demandas exteriores.
A ação social seria, portanto, produto de um sentido prático, um ato realizado a partir das injunções de cobranças de um contexto cultural singular.
Neste sentido, disposição cultural e ou de gosto, entre elas às relativas à moda, para Bourdieu, refere-se a um conjunto de esquemas classificatórios,
apreendidos de maneira sistemática ou de maneira difusa
no seio da família ou no interior de instancias produtoras de valores morais e comportamentais
com forte poder formador e identitário.

Numa tentativa de definição, Bourdieu afirma que disposição é o mesmo que exposição.

É porque o corpo é exposto, posto em perigo no mundo e constantemente confrontado com o risco da emoção, que se vê obrigado a levar o mundo a sério. Segundo ele, aprendemos com o corpo. A ordem social inscreve-se nos corpos através desta confrontação permanente, mais ou menos dramática, mas que dá sempre grande lugar à afectividade e, mais precisamente, às transacções afectivas com o meio ambiente social.
Para os interesses desta discussão, proponho então, agora, já na segunda parte desta palestra mobilizar conceitos, autores e uma sensibilidade do olhar para estudos sobre processos socializadores difusos e pouco sistemáticos das praticas de cultura.

E nessa direção é possível afirmar que além de teóricos como Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, outros como Peter Berger e Thomas Luckamann, ambos sociólogos europeus, mas expatriados nos EU, e autores do livro A construção Social da Realidade, contribuem nas reflexões desenvolvidas acerca dos processos socializadores difusos e silenciosos.

Mais especificamente, para Peter Berger e Thomas Luckmann a transmissão e ou incorporação de um patrimônio cultural imaterial, entre eles, as disposições de gosto, devem ser compreendidos na e pela interação simbólica entre grupos e indivíduos.
Esta perspectiva permite apreender o processo de constituição das disposições culturais de gosto, ou seja, a construção dos esquemas mentais e comportamentais dos sujeitos tendo como base a reciprocidade, a troca e a interação simbólica entre os indivíduos.

Segundo esta perspectiva, o mais íntimo dos traços de personalidade ou dos comportamentos, as mais íntimas das práticas individuais só podem ser apreendidas se detectarmos a rede de relacionamentos, a configuração social e simbólica de indivíduos com seus semelhantes.
Nesta linha de raciocínio, perguntamos então objetivamente, como se formam as disposições de gosto relativas à moda ou demais esquemas de ação naturalizados, tal como os relativos à sexualidade ou à religiosidade?
Tentando responder a essas questões, penso que devemos privilegiar dois momentos

Em primeiro lugar devemos recuperar as modalidades ou tipos de situações de transmissão e incorporação de heranças disposicionais do gosto e entre essas modalidades destaco a importância da linguagem e os modos de reiteração de sentidos desta linguagem
Em segundo lugar devemos considerar as condições de possibilidade, os alcances e limites dessas condições de transmissão e incorporação, ou seja, a questão da autoridade e os aspectos legitimadores que envolvem essas estratégias.

Vejamos, em relação ao aspecto da linguagem, concordando com os autores afirmaria que ela é responsável pela comunicação entre os indivíduos, ou seja, é responsável pela comunicação entre um eu e um outro, e
por extensão
a linguagem ou os sistemas simbólicos, suas categorias do pensamento e julgamento, tornam real e objetivo o mundo, dão um sentido coletivo ao nosso mundo
Enquanto sistema de sinais e significados apreendidos desde a mais tenra infância, a linguagem falada e ou gestual não é neutra, ela nos apresenta um mundo dotado de sentido e significados.
Em outras palavras, poderíamos afirmar que os sistemas simbólicos ou a linguagem podem ser concebidos de três maneiras.
Primeiro, como estruturas de orientação da ação ou instrumentos de conhecimento do mundo dos objetos e seres que nos rodeiam.
Neste sentido, a língua, a arte ou a religião são sistemas de símbolos já estruturados, sistemas que todos nós temos acesso e fazemos uso igualmente.
A segunda maneira de conceber os sistemas simbólicos refere-se à compreensão de estruturas estruturadas como um código de comunicação
aqui salientamos a natureza das equivalências entre sons e sentidos, passível também de ser utilizada por todos.

Todavia, esses símbolos de comunicação e conhecimento do mundo expressos na linguagem não se reduzem à submissão passiva e consciente. O lento processo de aquisição de referências inculcadas pelas instâncias produtoras de cultura é resultado de experiências inconscientes.

A família, a escola, o grupo de pares e mais recentemente as mídias, cada um à sua maneira, imporiam, sem coerção ou consciência, um sistema integrado de padrões de comportamento e representações.
Enquanto produtos de determinações sociais, os bens culturais produzidos em diferentes matrizes, submeteriam o agir e o pensar dos agentes de forma lenta e velada.
Nesse sentido, os sistemas simbólicos, assim concebidos, tornariam possível o consenso sobre a realidade que nos cerca.
Símbolos das mídias igualmente como a linguagem do cotidiano são instrumentos de integração do mundo. Enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação são responsáveis por parte do consenso acerca do sentido do mundo social.
Desta forma, qualquer tema significativo que a linguagem abranja reiteradamente – entre eles as disposições relativas ao gosto - poderá ser definido como um símbolo a ser seguido e tomado como evidente e natural.

Não obstante, para Berger e Luckmann, os processos de constituição simbólica do mundo, por estarem sempre em constante construção necessitam de reforço contínuo.
No que se refere às práticas da moda, estratégias conscientes e inconscientes – como por exemplo, a rotina das compras, a escolha de uma vestimenta nos rituais festivos familiares ou grupais, a consulta à experts no assunto - auxiliam a fornecer um ambiente de tipificar escolhas, e de certa forma auxiliam na sedimentação de tradições relativas à moda ou a um estilo.
Em outras palavras, o conhecimento expresso reiteradamente do que é próprio ou impróprio para se usar em tal ou qual ocasião ajudaria a construir uma realidade, ordenando o mundo da moda que será apreendido como um fato; e, em seguida este universo será interiorizado na forma de uma disposição de gosto, como verdade.

Assim sendo, quanto mais importante esse acervo de disposições para a preservação da memória e estabilidade de um grupo de estilo, mais cuidadoso será esse processo de fixação e legitimação;
mais atentas serão as estratégias de sedimentação e reiteração de uma tradição de estilo.

E agora, indo para a terceira e ultima parte desta apresentação, lembro que se até agora apresentei as estratégias lingüísticas e cognoscitivas de transmissão de um corpo de símbolos e valores imateriais, cumpre agora considerar as condições de possibilidade que viabilizam os processos de incorporação de disposições de cultura, que embora sejam pouco perceptíveis, revelam-se poderosas e insidiosas.

Como primeira condição de possibilidade que assegura a permanência de certos aspectos de uma cultura imaterial da moda, lembraria a regularidade em que elas se apresentam.
Ou seja, o ato de consumir a moda, o ato de se vestir de determinada forma, escolher o que comprar e como combinar nossas roupas, acessórios ou utensílios, revelam idiossincrasias grupais que são continuamente repetidas, seja em grupo ou individualmente.

A regularidade destas práticas expressa uma assertiva sobre a identidade de um coletivo ou de um grupo de estilo, reforçando sem conflito ou divergência, um gosto ou disposição de um jeito determinado de como e o quê consumir.
Tempo, regularidade, freqüência, rotina, são algumas noções que expressam condições sociais favoráveis à construção de maneiras de ser
trabalham a favor de uma orquestração de sentidos em que evidencias exteriores compõem representações acerca de um gosto.

Não obstante, nem a linguagem nem a reiteração de valores da moda teriam força suficiente se não contassem com os recursos de um sentido de autoridade que perpassam todos eles.
Seria necessário pois chamar atenção e compreender as funções de domínio dos guardiões da herança cultural de um gosto.
Grupos de pares, estilistas, ícones da moda, celebridades.....

Assim sendo, indo além dessas duas formas de conceber os sistemas simbólicos, ou seja, como instrumentos de conhecimento e comunicação, poderíamos compreender também a linguagem como instrumentos de controle ou dominação.
Por exemplo, a linguagem dos ícones midiáticos da moda, linguagem essa expressa em comportamentos e estilos de ser e agir, como parte integrante da cultura da moda, são mais que instrumentos de conhecimento e comunicação deste universo, podem ser instrumentos de poder.
Isto é, todos os atos comunicativos, entre eles os das celebridades, não estão destinados apenas a serem compreendidos.

São também signos de autoridade a serem correspondidos.

Nesse sentido, é preciso alertar para a necessidade de se observar quem faz uso da linguagem da moda, de onde se fala sobre moda e quando se fala sobre ela.
Afirmar que toda linguagem de estilo deve ser vista dentro de um contexto social de produção e veiculação é o mesmo que afirmar que ela
Terá sempre um valor diferenciado, dependerá sempre da relação de forças entre os locutores concorrentes no mercado da moda.

As relações de comunicação podem então se constituir em relações de forças que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material e simbólico acumulado pelos agentes envolvidos nessas relações.

Dito de uma outra forma, a imposição do discurso daquele que tem o monopólio arbitrário do gosto traduz-se em um poder simbólico; poder de inculcar formas e categorias de conhecimento do mundo da moda.
Segundo Bourdieu, o poder simbólico ou violência simbólica poderiam ser definidos como formas de poder invisíveis, só podendo ser exercidos com a cumplicidade daqueles que não sabem que estão sujeitos a ele ou mesmo que o exercem

Mas, como bem lembraria Berger e Luckmann interiorizamos e nos identificamos com o mundo exterior, pois necessitamos de um reconhecimento de nossos pares, em especial um reconhecimento dos outros que nos são significativos, as autoridades que nos são concebidas como legítimas

Os indivíduos então incorporariam o social, incorporariam as disposições de cultura sob a forma de afetos,
na valorização negativa ou positiva de prescrições ou enunciações performativas de um gosto.
O tom de voz, os silêncios, olhares e gestos sinalizariam sutilmente uma ordem ou uma chamada à ordem social de um gosto.

Assim sendo, as condições de eficácia dessas prescrições simbólicas silenciosamente transmitidas estariam duradoura e emocionalmente inscritas nos nossos corpos.

Mas para finalizar, lembraria um alerta de Berger e Luckmann, ou seja, a bagagem simbólica transmitida pelas tradições não é imutável.
Está profundamente arraigada em nosso inconsciente identitário, mas pode ser remodelada desde que condições específicas de socialização permitam sua revalidação ou alteração.
Em condições de pluralidade cultural como as de hoje, em que muitas instâncias socializadoras competem na nossa formação de gosto, como as mídias, as celebridades, os estilistas ou jornalistas da moda, podemos identificar táticas de distinção e ou de hibridismo na construção das disposições de gosto, abrindo espaço para uma variedade de apreciações e ecletismos no âmbito das praticas e estilos da moda, um verdadeiro jogo simbólico de referencias identitárias e estilos de grupo.
Não obstante, ainda que ambos sejam aspectos importantes, não se poderia abordá-los nos limites dessa apresentação; servem, contudo, como lembrete ou convite para próximas investigações.
Muito obrigada pela atenção.
Bibliografia Básica
SETTON, Maria da Graça Jacintho. Educação e Mídia. São Paulo. Editora Contexto, 2010.
SETTON, Maria da Graça Jacintho. Socialização e Cultura – ensaios teóricos. São Paulo. Editora AnnaBlume, 2012.
SETTON, Maria da Graça Jacintho. Bernard Lahire: a multiplicidade das condições de socialização e a cultura escolar. In REGO, Teresa (org.) Educação, Escola e Desigualdade, Coleção Pedagogia Contemporânea, vol. 1, Petrópolis, Editora Vozes, 2011.

Nenhum comentário: